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domingo, 24 de janeiro de 2010

Argentina: entre o governo e a governança

Por: Cesar Altamira
Tradução:
Leonardo Retamoso Palma
Lúcia Copetti Dalmaso


Uma primeira análise sobre as eleições nacionais para renovação de deputados e senadores realizada em junho de 2009 pode levar a interpretar o resultado como um voto de castigo ao governo kirchnerista, que perdeu a maioria parlamentar. Múltiplas razões podem explicar a derrota: o péssimo manejo do conflito com o setor agrário, que se estendeu de março até julho de 2008; questões de forma e estilo de governo (prepotência, soberba política e autoritarismo) que provocaram repúdio social; assim como os míseros resultados em termos de bem estar social do último ano e meio de gestão, que influenciaram uma parte importante da sociedade entediada diante da retórica oficial mentirosa – que falseia dados econômicos e sociais – que põe em dúvida os propósitos e princípios igualitários que o governo dizia e diz encarnar.

A derrota política põe em xeque a legitimidade do governo, fenômeno que se faz ainda mais contundente quando recordamos que esta crise se produz em um país onde o conflito social se resolve na rua, com métodos de ação direta em praças e rodovias. Trata-se de uma sociedade altamente politizada, onde a baixa institucionalidade deve ligar-se à crise da relação salarial fordista.
As eleições são também demonstrativas da crise da representatividade política, que tivera sua mais alta expressão no chamado laboratório político argentino das assembléias, que começou em finais de 2001 e se estendeu até 2002. Com, efeito os dados indicam uma abstenção total de 30% no âmbito nacional (valores nunca alcançados até agora), num país onde o voto é obrigatório e sua omissão é penalizada por lei.

A política kirchnerista com relação às organizações populares que antes lutaram contra o modelo neoliberal foi de tentar (ou fazer todo o possível para) capturá-las, quebrando as que resistiam à integração e ignorando as que se mostrassem não capturáveis e incorrigíveis. A orientação era domesticar as organizações sociais mais dinâmicas – aquelas que mais haviam se empenhado em enfrentar o comando do capital – buscando torná-las dependentes, subalternas e instrumentalizáveis. As promessas formuladas pelo kirchnerismo em seu primeiro governo, que buscava construir um novo movimento social e político, fez entrar em crise a imensa maioria dos movimentos que permaneceram após 2001. Contudo, já nas eleições parlamentares de 2005, tais promessas haviam ficado no esquecimento, o mesmo esquecimento que ajudaria a levar Cristina Fernández à presidência. Kirchner relançou o clássico andaime eleitoral do PJ (Partido Justicialista), em especial a máquina clientelista dos intendentes do conurbano bonaerense. Um aparato que os chamados “barões” da Grande Buenos Aires manejam e que se mantem praticamente inexpugnável desde 1983, controlando as obras públicas, compartilhando os negócios com a polícia e seus sócios do crime organizado, em uma região onde se encontram os maiores bolsões de pobreza e indigência do país. Resistem às políticas universais porque administram servindo-se de “punteros” como se fossem pontes clientelistas, a assistência social focalizada. Essa mudança de rumo fez com que numerosas organizações sociais se afastassem do espaço político oficial, passando a fazer oposição crítica ao governo.

O kirchnerismo, por sua vez, recorreu quase que de maneira permanente a uma lógica política assentada em leituras binárias (nós-eles, povo-antipovo, povo-oligarquia). São leituras que cobram uma interdependência, onde um pólo não existe sem o outro; neste sentido, o kirchnerismo mostrou-se um fiel continuador da tradição política peronista de instalar um grande relato nacional. Mas, este esquema de pensamento abrevia o caminho para uma perigosa redução da política, na medida em que desloca o conflito de toda disputa democrática. Não existem duas Argentinas (pelo contrário, são múltiplas e variadas Argentinas) e o pensamento binário está referenciado em épocas historicamente superadas. Finalmente, como arremate dessas políticas ambivalentes, Kirchner promoveu um infundado adiantamento das eleições – que estavam previstas por lei para outubro de 2009 – colocando-se à frente das listas de deputados da província de Buenos Aires e inventando as candidaturas “testemunhais”. Quer dizer, diante do temor de que os prefeitos – e até o governador e o vice-governador de Buenos Aires – arriscariam formar seu “próprio” partido, amarrou-os aos destinos do kirchnerismo.

Não considero acertado concluir, como fizeram intelectuais kirchneristas e importantes setores da intelectualidade argentina, que a direita neoliberal dos 90 triunfou nas ultimas eleições. Há que tomar nota do caudal de votos das grandes e médias cidades do interior do país, cujo conteúdo parece ter estado mais próximo a demandas democráticas do que de posições de direita. Em todo o caso, encontramo-nos frente a um voto não cativo, volátil, de uma sociedade feita multidão que expressa muito mais seus desejos de liberdade e autonomia do que adesão definitiva a políticas de direita. Trata-se, em todo o caso, de cidadãos que, não sendo golpistas “destituintes” (como seriam qualificados pelos intelectuais kirchneristas os que se opuseram às políticas oficiais com relação ao campo), nem articulando discursos emancipadores, demandam uma distribuição democrática do poder no país, enfrentando a desmedida concentração de poder do governo Kirchner. Trata-se de um sujeito social múltiplo e diverso que não se deixa alienar pelo poder concentrado.

Nosso desafio é tentar abaixo da superfície o que essas eleições expressam. As últimas eleições foram produzidas em um momento de tensões e disputas, um processo que teve início com o conflito com os produtores rurais em março de 2008 e foi alimentado pela concepção governista de uma disputa entre dois modelos antagônicos de crescimento: o do governo, com inclusão social; e o da oposição, com exclusão social. Este discurso binário entrou para funcionar como mecanismo de representação social e, simultaneamente, de deslegitimação política. Nos tempos que correm, o voto não dá mais conta de um conteúdo ideológico, transcendente diríamos, no sentido de que o eleitor já não se atrai por aquelas propostas de mudança revolucionária da sociedade, tão caras aos partidos da esquerda. Inclinamo-nos por fazer uma leitura dos votos com base nas singularidades e imanências, mais do que em “foras” e transcendências. São estas singularidades, que não devem ser confundidas com individualidades e individualismo, que dão sustentação a uma nova forma de democratização política em tempos de crise da representação, conferindo importância à idéia de governança com relação à de governo. Vejamos. Qualquer proposta de ampliação dos espaços democráticos em nossos dias não pode se furtar a uma crítica das definições tradicionais da esfera pública, da representação e, no limite, da política enquanto tal. A crise do sistema de representação afeta o dispositivo que deve assegurar a estabilidade do Estado e sua construção política, repercutindo de maneira direta sobre a soberania moderna, quer dizer, sobre a forma do mando político. Nesse contexto a clivagem entre Estado e sociedade tende inevitavelmente a se diluir. O desenvolvimento e a importância do processo de governança tem relação com esta crise, na medida em que tal processo, erigido sobre as ruínas da dita cisão, debilita o comando exercido de maneira direta sobre uma sociedade em rede, ao mesmo tempo em que evidencia a necessidade de controlar a potencialidade subjetiva e organizativa posta em jogo. Estamos diante de um processo molecular de produção de comando político que se contrapõe a um processo [anterior] de característica molar. Nesse sentido, Kirchner representa o velho em política; só é funcional a um manejo particular e concentrado do poder, puro governo disciplinar e zero governança, enquanto persistem em sujeitar-se a um tipo de aliança que persegue a constituição de inexistentes “burguesias nacionais”. Por outro lado, tudo indica que nos encontramos diante de uma diversidade de sujeitos sociais que já não reconhecem uma identidade. Sujeitos com necessidades diferentes que refletem heterogeneidades de tempos e de objetivos. Subjetividades heterogêneas. É precisamente esta nova geografia social que devemos tornar visível em nossa análise.

Devemos reconhecer que o capitalismo na Argentina, para além de suas especificidades, segue o rumo marcado pelo capitalismo no plano mundial, tendo entrado em uma nova etapa de desenvolvimento. Este resultado é um dado importantíssimo na hora de ensaiar uma análise crítica sobre a situação política nacional. O capitalismo de novo tipo – capitalismo cognitivo, onde a valorização se baseia no conhecimento e o trabalho derrubou as portas da fábrica para difundir-se na sociedade – abriu um novo cenário de confrontação social. Neste contexto, o confronto capital x trabalho adquire novas modalidades, ao mesmo tempo que emergem novos sujeitos políticos e sociais. Já não se trata daquele homogêneo proletariado fabril – que, mesmo que ainda exista, viu reduzido seu peso qualitativo e quantitativo – mas, em todo o caso, de uma heterogênea combinação de assalariados, alguns autônomos, informais e precários, outros dependentes e subordinados diretamente ao capital, quando não imigrantes, que modificou sensivelmente o mundo do trabalho, provocando sua substancial fragmentação enquanto faz surgir novas figuras laborais.

São essas novas condições do capitalismo pós-moderno que nossos intelectuais kirchneristas e não-kirchneristas resistem em aceitar, enquanto continuam vendo as novas condições políticas com os olhos do fordismo. Seguem pensando na renda (financeira e não-financeira) como um desvio parasitário do capitalismo, enquanto apostam na reconstrução de um estado de bem estar impossível de recuperar, na medida em que é a própria relação salarial fordista que entrou definitivamente em crise. Nem a acumulação capitalista pode se restringir aos marcos nacionais, com Estados capazes de desenvolver de maneira independente políticas de desenvolvimento; nem os sujeitos antagônicos que personificam o capital e o trabalho são os mesmos; tampouco os ganhos de produtividade podem ser medidos no marco do capitalismo de novo tipo. A crise da relação salarial mostra como todos os elementos dos acordos keynesianos estão hoje ausentes. Nesse contexto, fica inviável a tentativa do governo de recriar um novo pacto social de mãos dadas com o Conselho Econômico e Social gestor das grandes políticas nacionais. Nenhum New Deal é possível a não ser aquele que, emergindo dos próprios movimentos e das práticas institucionais autônomas, permita a reapropriação de um welfare de novo tipo, diferente do estatal que foi desmantelado e igualmente distante do existente de caráter privado.

Devemos ser capazes de trilhar o estreito caminho político que se abre entre a resistência e o apoio ao governo. Nem o kirchnerismo é o menemismo, nem percorremos processos similares ao venezuelano e/ou boliviano. Trata-se, neste aspecto, da construção de espaços de resistência política diferentes dos impulsionados durante o menemismo, porém resguardando autonomia e política própria. O ponto está precisamente na construção de uma alternativa crítica ao governo.

Fonte: http://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=22#more-22

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