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terça-feira, 22 de janeiro de 2008

ARTES



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ARTES
Depois daquele beijo
A cambojana Rindy Sam beijou a tela branca do pitor Cy Towmbly, provocando uma disputa na justiça e um debate sobre a arte conteporânea.
Por Camilo Soares

Aconteceu no último 19 julho, no Sul da França, durante exposição da Coleção Lambert em Avig-non. Deslumbrada com o quadro do pintor norte-americano Cy Twombly, de um branco imaculado, a jovem cambojana Rindy Sam levou os lábios sobre a tela, deixando a impressão de seu batom escarlate. Presa e levada a julgamento, a moça negou declarar-se culpada, defendendo aquilo que teria sido sim-plesmente um gesto de amor, ato não-deliberado provocado pelo poder da arte. Em desacordo com tal liberdade poética sobre obra avaliada em dois milhões de euros, o diretor da coleção Eric Mézil e seus advogados classificaram o ato de vandalismo, requerendo compensação financeira correspondente ao preço da peça. Meio às querelas judiciárias, mais do que apenas marcar o alvor da tela de Twombly, tal beijo parece ter levado à tona a separação entre dois mundos, o da arte e o do mercado de arte, além de ressuscitar o debate sobre a finalidade da arte em nosso tempo.

“Não considero que um beijo de mulher possa ser considerado como uma agressão”, conserta o advogado de defesa Jean-Michel Ambrosino, comparando a murros e marteladas dados recentemente sobre obras-primas em museus parisienses. De um certo aspecto, as marcas carmins de batom Bourjois (empresa que, sentindo o cheiro da ótima publicidade, aceitou revelar o bem-guardado segredo de sua fórmula para facilitar a restauração química da tela) podem até mesmo ser consideradas um comple-mento esperado e necessário para um trabalho artístico atual. Após descobrir os happenings e as per-formances, a arte contemporânea se aproximou definitivamente do público, como aponta o professor da Sorbonne Marc Jimenez em seu L’esthétique contemporaine, pois ela « tende a se fundir na vida cotidiana, a solicitar reações do público ». Vendo assim, o quadro do ilustre artista teria sido marcado pelo impulso que ele mesmo provocou; e o vermelho borrado sobre o suporte não seria nada mais do que o indício desse desejo, traços de simbologia sensual e erótica que há muito vaga pelo inconsciente coletivo. Marcas que impregnarão para sempre a obra, o tríplice Phaedrus, mesmo depois que sejam fisicamente desmaterializadas pelos laboratórios da Nasa, que se propôs prontamente a efetuar a tarefa. A partir de hoje, não mais se poderá comentar o Phaedrus de Cy Twombly sem se falar daquele beijo. Efêmero, veloz, virtual e carnal, fusão entre objeto e observador, o gesto de Rindy Sam ainda lembra da redefinição artística fora da instituição das Belas Artes, como já pregava Duchamps há um século.


Em fins do século 19, uma visita aos mosaicos bizantinos das igrejas de Ravena, Itália, marcaria profundamente o pintor Gustav Klimt. A influência dessas imagens religiosas tornou-se evidente em sua obra, na composição da figura humana, nas inscrições sobre a tela e escolha da tipografia, na geo-metria nas dobras de vestimentas e, sobretudo, no fundo chapado e na utilização do ouro, representa-ção da luz divina nos ícones. No entanto, bem ao contrário do que tentava impedir o famoso cânone 100, o que atraiu Klimt séculos depois para essa estética foram justamente as impurezas das imagens, tentadoras aos olhos como uma irresistível gula visual banhada pela sedução das cores e pelo deslum-bramento do ouro luxuriante. O beijo (1907-1908) de Klimt é tão devoto como o beijo bizantino, tão idealizado quanto e até mesmo igualmente sensual. Não obstante, a figura idealizada é agora terrena e, embora ainda inegavelmente divinizado, o desejo assume finalmente seu erotismo. O filósofo François Dadognet aponta essa ambigüidade mística como um fator importante na atual percepção da arte : « o espectador oscila entre dois pólos opostos, o que não deixa de nos lembrar dos princípios gerais da pintura religiosa: de um lado terrestre, as alusões, de outro lado, o vazio, o aéreo. E quem não ficaria incomodado por essa alternância».

Depois do ataque às Belas Artes pelo modernismo, a técnica plástica do artista deixou de ser pre-ponderante ou pelo menos incontornável. A invenção do ready-made, segundo Yves Michaud, des-substancializou a arte, tornando-a processual, o que teria efeito duplo para o ambiente das artes plásti-cas, de liberdade e de retenção: “O mundo é invadido por essa atmosfera estética. Simultaneamente, o mundo da arte ritualizado, sacralizado, apegado a sua preciosa raridade teatral, esvazia-se pouco a pouco, não somente de obras mas de participantes. Somente alguns poucos iniciados, obstinados, faná-ticos e conservadores, senão francamente reacionários, se obstinam a perpetuar o ritual ». A atividade artística evoluiu no século 20 numa velocidade alucinante, deixando para trás um mundo institucional da arte perplexo e cada vez mais perdido na incapacidade de avaliação. Sentindo sua legitimidade ame-açada, críticos, curadores e organizações se trancafiaram num profundo obscurantismo para justificar seus salários ou as estratosféricas cotações das peças de arte que representam nesse mercado em franca ascensão.

Diante de paradoxal ressacralização de uma arte já atéia, da mercantilização de uma atividade anticapitalista e anárquica, um beijo sobre a tela revelou o desproporcional e descabido elitismo da arte contemporânea. Depois da queda da figuração, da supressão da bidimensionalidade, da revalorização do corpo como lugar de arte e após o público ser convidado a participar de criação artística, a indigna-ção do vanguardista Cy Twombly e a soma exorbitante de ressarcimento pedido pelos organizadores da exposição espelham um irritante não-me-toquismo institucional que reenquadrou a arte como um ato nobre, caro e conceitual. Julgamento finalizado em 16 de outubro, Rindy Sam deverá verter 1.500 euros aos organizadores da exposição e aos detentores da obra e o simbólico um euro pedido pelo ar-tista, que não quis aumentar a polêmica. Independentemente das conclusões penais, seu beijo, consi-derado iconaclasta pela mídia, desprendeu o nó de uma discussão sobre as evidentes limitações da arte contemporânea, do fazer artístico e do apreciar estético dentro da percepção atual. Além disso, talvez tenha mesmo esquentado um pouco a frieza desse meio, oferecendo novamente à estética o direito de ser transgressiva. “Você gosta de Twombly?”, perguntou um jornalista à ex-réu. “No processo eles disseram: suas obras não deixam ninguém indiferente. Pois é, eu estou de acordo”.



(Leia a matéria na íntegra, na edição nº 85 da Revista Continente Multicultural. Já nas bancas)






Camilo Soares é jornalista.

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